Poesia Como Guia Moral

Comecei a dizer poesia, posso dizê-lo, egoisticamente. Só para mim. Não tinha qualquer intenção consciente de poder um dia fazer desta atividade vida profissional, muito menos de convergir à minha volta um público tão sedento por algo tão simples e tão acessível. Sempre o fiz porque me pareceu tão fácil como escrever. Como falar. Como respirar.

Desde que criei a minha página do TikTok que todas as semanas uma mão cheia de jovens, muitos quase com metade da minha idade me dizem que se inspiraram por aquilo que eu faço. Sentem-se envigorados por algo que, nas suas palavras, "não conseguem bem explicar". Pode dizer-se algo quase intrínseco e inato à condição humana.

Estas demonstrações trouxeram-me várias questões:

  • porquê? porque razão isto que faço, e que me é tão natural como respirar, literalmente - dou por mim a recitar poemas que me estão embrenhados na carne sem razão lógica aparentemente nenhuma - está a nutrir nestes jovens estes sentimentos tão inexplicáveis de motivação e de "querer descobrir esse mundo que é a poesia!" ?

  • Se, por alguma razão, a poesia me chegou quase instintivamente, muito pela música, porque razão estou eu tão surpreso por estar a acontecer o mesmo com todos estes jovens? o que que mudou para acharmos anormal uma criança querer descobrir aquilo que a poesia pode fazer nascer dentro de si? De onde veio a conversa de que "és demasiado novo para isso"? De “um dia entenderás.” ou “precisas de mais maturidade para entender tudo isto. Tecer este tipo de comentários é, à partida, cortar as pernas a jovens com sede de conhecimento. Não existe “maturidade” para a poesia - existe aquilo que sentimos quando a lemos e que muda ao longo da vida. Um dos primeiros poemas que me lembro de ler e ouvir foi o “A vida é um corridinho” do João Villarett. Encontrava-se num pequeno mp3 do meu avô e eu devia estar no 6/7 ano. É um poema lindíssimo que se debruça sobre a passagem do tempo. O viver a vida. A mudança dos tempos e das vontades. Uma pequena narrativa até à morte e ao paraíso. A verdade é que desde esse momento até hoje, esse poema continua a despoletar em mim sentimentos e sensações muito diferentes daquelas que fez das primeiras vezes que o ouvi. Mas em lado algum quer isto dizer que tudo o que senti ou a forma como o encarei quando era mais novo estava errada. Não existem errados na poesia. Ou na arte. Existe sim um certo filtro de ingenuidade quanto mais jovens somos. Não vivemos nada ainda. Não percebemos o escopo total das experiências colocadas em palavras. Lemos aquilo que achamos ser o correto mas mais importante ainda, lemos sem enviesamentos. Lemos o estado puro do texto.

  • porquê eu? sendo Portugal, discutivelmente, o país que melhor escreveu poesia em todo mundo, porque é que eu pareço ser capaz de atrair toda esta atenção, principalmente junto dos mais novos, sobre algo tão enraizado e festejado e estudado na cultura portuguesa mas que ao mesmo tempo é vendido como um terreno hóstil para as mentes mais jovens, claramente subdesenvolvidas, dizem?

  • o que falta? é impossível testemunharmos estas demonstrações de fome intelectual e literária sem sentirmos que existe algo a falhar. Os jovens do séc. XXI não são os mesmos do Séc. XX. A sobrestimulação decorrente da nova revolução industrial - a tecnológica - provocou mudanças cognitivas demasiado significativas que tornaram a forma como os ensinamos inútil, monótona e saturante.

  • existe mercado para a intelectualidade? a noção ingénua de que a intelectualidade só deve ser estimulada dentro do seio familiar ou quando os jovens já são mais crescidos é para lá de descabida. A falta de estimulo intelectual leva a que muitas crianças virem as suas atenções para aquilo capaz de lhes responder na mesma moeda. Um jogo. Uma televisão. Um computador. Um telemóvel - o suprasumo do deambulo errático. Gosto de lhe chamar a fábrica dos sonhos desmedidos. Contudo, não será esta problemática uma questão meramente de perspectiva? Porque a verdade é que numa aplicação criada para entreter acima de tudo, quando lhes aparece um rapaz que diz ser dizedor de poesia e mostra que a poesia já não é só aquilo que vemos nos livros, os jovens percebem que a poesia pode também ser vista como entretenimento e que não perde valor. Que a poesia não é um monstro papão guardado no armário do avô a sete chaves. Que a poesia é aquilo que fizerem dela. Algo tão jovem como as músicas que ouvem nas rádios e que tal como qualquer outra arte está destinada a alterar o seu rumo, a sua metodologia e a sua forma de expressão e apresentação.

  • São precisas regras? esta é sem dúvida a mais premente questão com que me tenho debatido nos últimos dias, nos meus devaneios. O que é que os poetas conseguem fazer que mais nenhum outro género consegue. E essa resposta manifesta-se simplesmente. A poesia é o único género literário capaz de representar de forma concisa, dentro de regras mais ou menos delimitadas, aquilo que leva outro qualquer escritor um romance intrincado de 400/500 páginas a escrever. Quando alguém é confrontado com a tarefa de expôr uma verdadeira e dificil imagem da vida humana o primeiro impeto é jorrar toda essa jornada no papel. Contar todos os detalhes, ser o mais especifico. E existe, sem dúvida mestria nessa construção. Porém, a dificuldade de expôr essa mesma imagem estando constrangido a um número reduzido de ora frases, ora esquemas rimáticos, ora recursos estilisticos, torna algo que noutro género é arte numa autêntica obra-prima. Digam-me: seriam os Lúsidas e a sua representação - irónica ou não - da grande jornada portuguesa tão celebrados não se encontrassem eles redigidos nos canónicos "Alexandrinos"? Seria a Mensagem tida como a obra mais importante da poesia portuguesa não fosse o seu uso exímio de aforismos e de simbolismo?

    Pessoas que dizem que os constrangimentos não dão aso a nada de positivo na ação humana são pessoas que nunca se questionaram acerca do mundo que as rodeia. A criatividade só se manifesta totalmente quando confrontada com limitações. Esta é uma das várias razões pelas quais são necessárias regras. A existência de regras não é sinónimo de estagnação. A existência de regras é sinónimo de uma luta pela investigação de novas e melhores formas de olhar o mundo dado o conjunto de principios ou regras que o movem em dada altura.

  • que utilidade tem a poesia? esta pergunta parece uma daquelas com rasteira. Mas é mais profunda do que isso. Que utilidade tem a poesia para além do mero teor estético e/ou literário que nos é tão descaradamente vendido? Terá algum valor para além da sua importância cultural ou intelectual? Poderá ensinar-nos algo que se calhar noutro lado não encontraríamos respostas? E mais importante ainda: porque razão querem cada vez mais jovens descobrir a poesia? Existe algum significado embrenhado nas entrelinhas dos manuais escolares? Embrenhado na matéria orgânica do mundo? De certo não haveria esta tendência tão forte para algo puramente estético. Podemos fazer o caso de cada vez mais cedo nos apercebermos de que não vivemos só de estética como o mundo digital nos ensina ou nos quer impingir. Uma existência virtual está condenada a efemeridade. Não são apenas frases bonitas num livro que por acaso descrevem aquilo que sentimos no exato momento mecânico em que por alguma razão nos sentimos tristes. Não é partilhar esse mesmo texto na nossa história durante 24 horas e depois passou. Isso não é poesia, mesmo que tenha esse rótulo atrelado. A poesia não nos larga e nós sentimos. Poesia é um processo metalinguistico a partir do qual nos revemos nas palavras de alguém que não conhecemos e que não escreveu nada para nós. A poesia é a sensação de que cada palavra em algum poema quer dizer mais do que só o que está la escrito.

Numa entrevista ao Ethan Hawke ele articula o porquê e o momento em que as pessoas se viram para a poesia. Diz qualquer coisa do género: ninguém quer saber dos poemas do Allen Ginsberg ou de qualquer outro poeta até… que o vosso pai morre. ou o vosso irmão. Encontram-se num estado tão deplorável que vão à procura de alguém que vos entenda. Com quem possam partilhar a vossa dor. Ou então o contrário: estão tão apaixonados que nem sequer sabem como agir. Só querem saber se é possivel o que sentem já ter sido sentido por alguém?

Uma vez mais: procuram quem partilhe da sua dor.

É neste momento que a poesia deixa de ser um luxo e passa a ser sustento. Essencial à vida.

A poesia é aprendizagem pela caneta de outros.

Aprender a viver. Aprender a ser. E aprender a ver.

O mundo é tão ou mais bonito quanto melhor o soubermos escrever.

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